sexta-feira, 3 de março de 2017

“É hora de Lula ir para o ataque”

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Autora de um best-seller acadêmico ("Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva,") a professora Gisele Cittadino, coordenadora do Programa de Mestrado e Doutorado da PUC-Rio, foi uma das integrantes do grupo de intelectuais que articulou o lançamento de um abaixo assinado em defesa da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República. (O grupo também contou com a participação de Leonardo Boff, do jornalista Eric Nepomuceno, além dos juristas João Ricardo Dornelles e Carol Proner). Aos 59 anos, com um doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (antigo), Gisele Cittadino falou ao 247. Sua entrevista:


Qual a importância da candidatura de Lula no atual momento político?

O lançamento da pré-candidatura do ex-Presidente Lula nesse momento seria um importante sinal, não apenas para as forças políticas que compõem as esquerdas brasileiras, mas também para todos aqueles comprometidos com algum modelo de democracia social e de defesa do estado de direito e das liberdades fundamentais. Lula tem essa capacidade de agregar, em um espaço de centro-esquerda, os grupos políticos que foram apeados do poder de forma ilegítima. Depois de quase dois anos de um processo implacável de deslegitimação e criminalização política, chegou a hora do ex-Presidente Lula ir para o ataque.

Como assim?

É evidente que ele precisa continuar a defender seus próprios direitos e seu patrimônio político, especialmente em um contexto de lawfare, ou seja, de uso do sistema jurídico como forma de perseguição indevida e de violação de direitos fundamentais. Creio que é difícil, para qualquer um, aceitar que o direito e o sistema de justiça do seu país – criados para dar segurança jurídica ao cidadão – estejam sendo utilizados para perseguir, destruir, deslegitimar e criminalizar pessoas ou grupos específicos. Imagino como deve ser doloroso para Lula se ver no centro de um processo persecutório ilegítimo. Dificilmente alguém será capaz de me convencer que o rompimento do aneurisma com o qual Dona Marisa Letícia convivia há mais de dez anos não foi causado pelo profundo estresse fruto dessa perseguição absurda. A violência contra um projeto político legitimado pela soberania popular não parte dos tanques, como no passado, mas de uma parte de uma outra corporação, o sistema de justiça. Isso não é apenas triste e lamentável porque destrói vidas, arruína biografias, prejudica grupos políticos legítimos. Trata-se de uma forma de violência devastadora, exatamente porque encoberta por uma aparência de legalidade.

Divulgado o abaixo-assinado, com 500 assinaturas, em sua maioria de personalidades engajadas politicamente, começa a segunda fase da mobilização, que é chegar ao cidadão comum. Como vocês pretendem fazer isso? Vocês tem uma meta a ser atingida, com dezenas e até centenas de milhares de assinaturas?

Estamos trabalhando para que isso aconteça. Numa única manhã, a Carta das Brasileiros e dos Brasileiros já obteve o apoio de mais de 3000 pessoas, um número impressionante. O que também nos mobilizou, desde o início, foi a adesão imediata não apenas de militantes históricos, como João Pedro Stédile e Emir Sader, para ficar em dois exemplos, mas também de figuras importantes, com trajetória distinta, como o professor Roberto Romano, da Unicamp. Escritores, jornalistas, artistas, produtores teatrais, professores, pesquisadores, profissionais liberais, com forte reconhecimento em suas áreas de atuação, parecem, na verdade, já esperar por um convite dessa natureza. Este é o sinal político importante. A Carta é uma petição em meio digital, que requer adesão via preenchimento de dados e posterior confirmação via email. Isso até pode representar uma limitação, pois envolve recursos com os quais "cidadãos digitais" são capazes de lidar mais facilmente. A credibilidade fica acima de qualquer dúvida, porém.

Uma parte importante deste processo são eventos programados em grandes cidades. Temos um calendário mais ou menos definido?

Para os meses de março e abril já temos dois eventos acertados. No dia 27 de março, com a presença confirmada do ex-Presidente Lula, vamos lançar aqui no Rio de Janeiro, o livro “O Caso Lula”, organizado por Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Zanin e Rafael Valim, e que conta com a colaboração de vários professores e advogados. Nesse lançamento, vamos fazer um debate sobre Lawfare, e os impactos políticos, econômicos e culturais da Lava-Jato. Será, ainda, um evento afetivo, pois é impressionante o número de cariocas, especialmente os jovens estudantes, com vontade de abraçar carinhosamente o nosso ex-Presidente.

Há outros eventos sendo articulados?

No mês de abril, será a vez do lançamento, em Belo Horizonte, do Observatório de defesa contra a “deslegitimação” de Lula, criado por Fernando Morais e Paulo Sergio Pinheiro, em São Paulo, no mês de outubro passado e já instalado no Rio de Janeiro desde novembro. Na capital mineira, também com a presença de Lula, será lançado o livro “O Caso Lula.

Como jurista, você acredita que existe alguma base para a condenação de Lula pela Lava Jato?

Não sou criminalista, mas não vi base legal nem para a abertura de um processo contra o ex-Presidente Lula, quanto mais para uma condenação. Qualquer cidadão pode acessar o site “A Verdade de Lula” e assistir o depoimento de todas as mais de 60 testemunhas de acusação e defesa ouvidas até o momento. Não há nada que incrimine o ex-Presidente. O lamentável e risível “powerpoint” do procurador paranaense é a prova mais evidente que o Ministério Público nada tem, senão convicções, a apresentar ao juízo. A vida de Lula foi inteiramente devassada: não há contas no exterior, não há delação que o incrimine, não há patrimônio incompatível com os recursos que recebeu. Espero que a justiça federal de Curitiba não opte pelo triste caminho tomado por Joaquim Barbosa no caso da AP 470, e recorra a uma interpretação equivocada da “teoria do domínio do fato”, para concluir que, se houve roubo de recursos públicos, o Presidente da República deveria, certamente, ter conhecimento. Nós não merecemos assistir a esse filme mais uma vez.

Apesar da fraqueza congênita das acusações contra Lula não há sinal de que o processo contra ele será abandonado. Nessa situação, eu pergunto qual o caminho para se garantir que seus direitos -- e do eleitor brasileiro -- sejam respeitados.

Enquanto houver politização do sistema de justiça no País não haverá como garantir os direitos de Lula, ou de qualquer cidadão brasileiro. Há no Brasil hoje uma enorme confusão entre judicialização da política e politização da justiça. No primeiro caso, é natural das democracias de viés normativo que as Constituições assegurem direitos, e que os cidadãos busquem o sistema de justiça como forma de concretizá-los. O caso da união homoafetiva ou das cotas para negros são emblemáticos desse processo. Bem diferente é a politização da justiça, que ocorre quando juízes ou ministros de tribunais superiores julgam a partir de suas convicções ou compromissos políticos. É intolerável a manifestação política de juízes que usam a função seja para perseguir adversários, seja para favorecer aliados. Este é o debate essencial que a pré-candidatura de Lula permite enfrentar. O caráter anti democrático desse comportamento se torna evidente quando atinge aquele cidadão que é o presidente da República com os mais altos índices de reconhecimento na memória popular. Não estamos falando de criar embaraços a um candidato que, com propostas boas, más, ótimas ou péssimas, consegue expressar -- com toda legitimidade -- a vontade de uma pequena parcela dos brasileiros. Estamos falando de um personagem que já é histórico. A população tem saudade do Lula.

Como definir a atuação do Supremo Tribunal Federal?

O STF tem agido de forma errática. De um ministro do Supremo não se deve esperar apenas conhecimento jurídico e ilibada reputação. Não deveriam aceitar tal função aqueles que não têm coluna vertebral ou os que se encantam consigo mesmos. Os primeiros não podem ou não conseguem resistir à pressão da mídia ou da opinião pública. Aos segundos, falta a coragem, pois a covardia é um dos principais atributos dos narcisistas. Se a isso agregamos a ausência de um conhecimento mínimo sobre a lógica da ação política, não é surpresa que estejamos diante de uma das piores cortes da nossa história. Nossa jovem Constituição, lamentavelmente, não encontrou quem fosse capaz de defendê-la.

O enfraquecimento acentuado do governo Temer, agravado pela delação do amigo e assessor José Yunes, tem colocado a hipótese de ele se tornar incapaz de cumprir o calendário eleitoral, que prevê eleições em 2018. Neste caso, vê-se uma articulação silenciosa para encontrar uma escolha por via indireta, por este Congresso, considerado o mais corrupto da nossa história. Como você vê esta possibilidade?

Essa segunda alternativa, a das eleições indiretas, seria, ao meu ver, tão ilegítima quanto o golpe parlamentar de 2016. Há um “pecado original” incapaz de ser desfeito e que contamina qualquer ação política que pretenda governar o país. Trata-se da violação da soberania popular, e da implantação de um projeto político e econômico que foi derrotado nas urnas. Eleições indiretas não seriam capazes de eliminar esse “pecado”. Se a isso agregamos o fato de que o governo Temer é, a cada dia, alvejado por denúncias de corrupção que envolvem os parlamentares de sua base de sustentação, não será fácil para os integrantes do PSDB que conduzem o modelo econômico do governo ilegítimo levar adiante seus objetivos e propostas. A qualquer momento, e de onde menos se espera, pode aparecer um novo fato capaz de alterar inteiramente o cenário político.

Qual é a saída, então?

Estou convencida de que a melhor alternativa em termos de resgate da legitimidade política, é a convocação de eleições gerais, articulada a um pacto social minimamente confiável e do qual participassem todas as forças da sociedade política. Esta é a saída. Não sou ingênua a ponto de confundir desejo com realidade. Será preciso lutar por isso, argumentar, convencer e mobilizar. Para as pessoas que articularam o afastamento de Dilma, e agiam dessa maneira desde a derrota nas urnas em outubro de 2014, o retorno de Lula, num prazo tão curto, representa uma derrota difícil de aceitar. É um caroço difícil de engolir: muitas comprometeram biografias de passado honroso em 2016. Sem o menor prurido com a preservação das garantias constitucionais, eles farão o que estiver a seu alcance para impedir a candidatura Lula, como os grandes jornais de São Paulo deixaram claro nos últimos dias. Vão permanecer de olhos fechados para todo abuso, toda medida arbitrária. Esta é a dimensão real do movimento pela pré-candidatura Lula.

Aonde se pretende chegar?

Precisamos entender uma diferença. Mais do que uma disputa pela presidência, natural em toda democracia, estamos falando de uma virada histórica, uma correção de rumo para permitir o retorno a democracia. E esta é a grande questão colocada. Se Lula pode disputar as eleições presidenciais com chances de vitória, qual teria sido a racionalidade política do golpe parlamentar: tomar o poder para devolvê-lo, por vias legítimas, para o mesmo grupo político afastado, em pouco mais de um ano?

Imaginando - num exercício de simples hipótese teórica - que Lula não possa disputar a eleição presidencial, como fica a democracia brasileira?

A democracia brasileira ficará debilitada se Lula não puder disputar a eleição presidencial em função do uso indevido do direito para criminalizar um cidadão inocente. E estará morta se as eleições deixarem de ocorrer. De qualquer forma, Lula continuará a ser o maior eleitor da próxima disputa presidencial, seja qual for a circunstância. O candidato que obtiver seu apoio irá concorrer com real possibilidade de vitória. Não tenho qualquer dúvida quanto a isso, considerando inclusive a fragilidade dos nomes que aparecem no cenário eleitoral como adversários do projeto político do Partido dos Trabalhadores.

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