quinta-feira, 23 de novembro de 2017

TV a serviço da tecnologia do racismo

Por Joice Berth, no site da Fundação Maurício Grabois:

[…] que foi que ocorreu para que o mito da democracia racial tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso? Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p.224.
Os meios de comunicação, todos eles, têm sido braço direito e esquerdo na propagação das tecnologias da estrutura racista. Isso é uma verdade que se pode comprovar com absoluta facilidade em todos os veículos de comunicação disponíveis, em especial a televisão.

O poderoso e influente jornalista Assis Chateaubriand foi o responsável pela primeira transmissão televisiva no Brasil, em 18 de setembro de 1950, pela TV Tupi, em São Paulo. No ano seguinte, seria a vez de o Rio de Janeiro ser contemplado com essa novíssima ferramenta, viabilizada por recursos importados dos Estados Unidos. O Brasil, então, passou a ser o quarto país do mundo a operar esse tipo de veículo, ficando atrás apenas da Inglaterra, França e dos próprios Estados Unidos. O país seguia pouco mais de meio século de pós-abolição. Uma pós-abolição que ora tentava se livrar das sobras humanas, cuja exploração explícita já não era mais permitida pela lei, ora se valia da fragilidade dessas sobras vivas para prosseguir com os acúmulos de riqueza construída à custa da exploração histórica e não reparada.

Nesse contexto, a televisão foi, a um só tempo, o molde perfeito para os anseios capitalistas pautados pelo controle social via alienação e seletividade da informação passada e instrumento de altíssima performance que consolidaria o projeto de branqueamento de nossa sociedade mestiça, mostrando ao mundo que o país era branco, ao mesmo tempo que minava a formação da identidade e da subjetividade dos povos negros e indígenas, entre outras minorias.

Entende-se que um processo de construção de identidade de um povo se dá através de aparelhos sociais, como a educação e a comunicação. É inegável que esses aparelhos são determinantes de valores, influenciam atitudes e formam consciência, na medida em que transmitem valores étnicos, estéticos e outros elementos que contribuem para a composição de uma identidade étnica. O ato ou efeito de identificar-se implica o reconhecimento, em si próprio, de algo que se percebe em alguém (e vice-versa), funcionando esses aparelhos como espelhos refletores da sua imagem e semelhança. Roberto Carlos da Silva Borges e Rosane Borges, Mídia e racismo, Petrópolis, DP et Alii; Brasília, ABPN, 2012.

A atuação da televisão, porém, foi firme e sutil na manipulação do já suficientemente racista imaginário social, que necessitava trabalhar simultaneamente com telespectadores brancos e negros, de modos diferentes, mas relacionados entre si. Não podia, por exemplo, garantir uma representatividade negra quantitativa necessária para o fortalecimento positivo da imagem de sujeitos negros, trabalhando com muita habilidade a ciência de que a formação da subjetividade perpassa inadvertidamente pelo reconhecimento de si mesmo por meio da imagem do outro, e isso se dá garantindo a quantidade e a qualidade da representação humana em todas as suas possibilidades existenciais.

O processo de rejeição racista da existência de sujeitos negros não foi iniciado com o advento da criação da televisão. Já era a sequência do que foi iniciado quando os primeiros negros pisaram na América, pois, para garantir a exploração de escravizados, era necessário um ralo para escoamento da culpa acumulada por uma moralidade cristã, e foi justamente o movimento de desumanização do sujeito negro que serviu nesse sentido.

O sistema racista, ao longo de quase quatro séculos de escravização, criou um lugar para o sujeito negro. Esse lugar era exatamente o depósito de todas as incongruências e imperfeições humanas que o pensamento brancocêntrico nunca ousou confrontar. O quartinho dos fundos, o lugar das bagunças, onde sujeitos brancos poderiam ocultar seu eu indesejado, seu lado assombroso e negativo com o qual não saberia lidar.

No entanto, esse lugar não poderia ser apenas um espaço vago, em se tratando de sujeitos e suas subjetividades. Seria necessário dar corpo a esse lugar criando uma existência que abarcasse o contingente existencial indesejado e reprimido que amedrontava o ego excessivamente frágil dessa categoria social, a branquitude, que se afirma enquanto ser humano à custa da coisificação marginal de outras categorias sociais que não compartilham das mesmas características físicas que as suas.

O racismo nos usa como depósito de algo que a sociedade branca não quer ser. Algo que é projetado em mim e eu sou forçada neste mise-en-scène, nesta encenação, a ser protagonista de um papel que não é meu e com o qual eu não me identifico. “Grada Kilomba: o racismo e o depósito de algo que a sociedade branca não quer ser”, Agência Ponte, 9 jan. 2017.

Também seria necessário ancorar a existência branca pautada pela superioridade autoproclamada, consolidando a recriação desse sujeito de tal forma que correspondesse de maneira eficiente à idealização de si mesmo.

Assim, seguiu-se ao longo da história da televisão brasileira a imagem estereotipada e distorcida do sujeito negro, começando pela escassez (quase) total de sua presença e passando pelo exercício de inferiorização (quase) sutil, garantindo que a representação fosse sempre prejudicada o suficiente para que o sujeito negro não sentisse orgulho de si mesmo, ao mesmo tempo que garantia ao sujeito branco a possibilidade de expressar seus ideais de superioridade por meio da compaixão e da aceitação desse sujeito contrário no seu meio social.

Os serviçais negros de ambos os sexos, sempre pacíficos, embora tremendamente ignorantes e desprovidos de cultura e bons modos brancos, são um exemplo comum dessa técnica de manutenção do lugar criado para o sujeito negro exercido pela televisão.

O mito da democracia racial foi amplamente propagado, visto que sempre nas telenovelas negros e brancos conviviam de forma pacífica, o que alicerçou na mentalidade do sujeito negro uma aceitação inexistente da negritude, pois essa convivência era claramente hierarquizada e estabelecia sem nenhum constrangimento quem era “superior” e, portanto, mandava e quem era “inferior” e, assim, obedecia. E não se tratava de uma questão de classes, uma vez que a representação de brancos da classe pobre ainda apontava privilégios que incluíam ter um serviçal negro(a), e podemos reparar a quase inexistência de uma classe média negra representada na televisão, seja nas novelas ou nas peças publicitárias.

É bem verdade que o conteúdo televisivo é pautado pela opinião pública. Entretanto, cabe observar friamente que estamos diante de uma ferramenta de comunicação que reflete mas também forma opinião, o que encerra um exercício sutil de manipulação, valendo-se dessa desculpa para continuar exercendo as tecnologias opressoras do racismo, apoiando-se na isenção de posicionamento e em uma falaciosa obediência ao que demandam os telespectadores e anunciantes.

Podemos discorrer muito mais a respeito da participação ativa e decisiva da televisão brasileira na manutenção das tecnologias do racismo. Mas em 2017, se esse assunto ainda não foi solucionado, é possível afirmar que estamos no caminho de outra personalidade para a televisão brasileira que possa se redimir de sua atuação demagoga e tendenciosa acerca das questões raciais, aprendendo timidamente a ouvir e encaminhar o que está sendo dito há anos por especialistas e estudiosos das questões raciais. Talvez por ter perdido espaço importante com a proliferação de vozes negras, que encontraram na web um canal para extravasar o grito de revolta conjunta e ancestral e têm feito isso a contento, garantindo inclusive alguma representatividade, a qual sempre foi negada pela própria televisão brasileira.

* Joice Berth é colunista do site Justificando/Carta Capital e assessora parlamentar do vereador paulistano Eduardo Suplicy, é pós-graduanda em Gestão de Políticas Sociais pela Universidade Brás Cubas e pesquisa questões raciais, feminismo negro e direito à cidade.

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